Buscar múltiplos passados para imaginar outras humanidades.
Bruno Stori
Universidade Federal do Paraná, Brasil | GEOPAM
“El sesto capitán, Otorongo Achachi Apo Camac Inga”. Desenho número 56 de El primer nueva corónica y buen gobierno de Guamán Poma. Fonte: Biblioteca Real da Dinamarca.
Na monumental e bastante conhecida El primer nueva corónica y buen gobierno (c. 1615), o autor quechua Felipe Guamán Poma de Ayala dedicou parte das mais de mil páginas do manuscrito a um relato da história do mundo andino, de suas origens à formação do Tawantinsuyu, o império inca. Em uma combinação de elementos da cosmologia incaica com narrativas bíblicas, Guamán Poma leva o leitor a um mergulho pelos Andes antigos, passando por quatro humanidades (ou “idades”) que, em sequência, possibilitaram a construção e expansão do império. Nessa história da conquista dos territórios que formariam o Tawantinsuyu, destacam-se quinze capitães que lideraram expedições contra os inimigos do Inca e anexaram várias províncias (com a exceção do capitão Inca Yupanqui, que, dorminhoco e preguiçoso, “sin conquistar murió”).
Dos grandes feitos militares enumerados no texto, talvez os do capitão Otorongo Achachi sejam os mais singulares. Também chamado Apo Camac Inca, Otorongo Achachi é descrito como o único a ter se transformado em um jaguar (otorongo) para fazer guerra no Antisuyu, região de floresta a leste da cordilheira que posteriormente constituiria uma das quatro partes do império. O desenho feito por Guamán Poma dedicado ao capitão nos mostra dois indivíduos rodeados de árvores: uma figura felina com um rosto quase humano e em posição de ataque domina a imagem, enquanto um Anti, pronto para revidar com uma flecha, está quase fora do plano. Ainda que pontual, a aparição desse personagem híbrido é curiosa: se, por um lado, humanos vestindo uma “roupagem” animal são recorrentes em narrativas do passado e do presente em tantas sociedades indígenas nas terras baixas da América do Sul, a presença de Otorongo Achachi pode destoar das motivações do autor da Nueva corónica, interessado em apresentar ao rei Felipe III uma versão do passado andino que dialogasse com a fé cristã.
Que tipo de passado é fabricado quando os sujeitos que o integram deixam de ser exclusivamente humanos? Como esse passado nos ajuda a entender nossas relações com outros animais? No caso de Otorongo Achachi, Guamán Poma conta uma história onde tornar-se um animal é um ato de guerra, onde a roupa felina é “emprestada” para virar um instrumento com função bélica – aliás, o capitão-jaguar pode ser um exemplo bastante literal do princípio de que incorporamos as ferramentas que utilizamos para diferentes finalidades, ao invés de simplesmente manuseá-las. Para fugirmos desse passado com uma perspectiva utilitária, podemos pensar na história de Canuto, membro de uma comunidade Mbyá-Guarani na região de fronteira entre Brasil e Argentina. Nessa aldeia, conta-se que, muitos anos atrás, Canuto passou a tratar os membros da aldeia com agressividade, andava de quatro na floresta, deixou de tomar banho e comeu carne humana – estava se transformando em onça. Teve uma morte trágica e foi enterrado em um lugar secreto, mas não foi esquecido: seus feitos, mesmo que não heroicos como os de Otorongo Achachi, permanecem na memória dos Mbyá-Guarani, como um lembrete de que no passado era possível virar jaguaretê (coisa que talvez ainda esteja no horizonte de possibilidades).
Lembrete para os próprios indígenas e para todos nós, esses homens-jaguares indicam que o passado é uma fonte valiosa para tentar entender as muitas maneiras como nosso comportamento como humanos varia de acordo com as diferentes performances que sustentam as relações de alteridade com outras espécies. Se, no presente, nossas próprias crises levam ao questionamento do que é humano e o que não é, essas histórias nos convidam a imaginar múltiplos passados – de guerra e perturbação da comunidade, mas não só – em que nem sempre fomos apenas humanos.
Para conhecer mais
A Transformação de Canuto (filme). Direção de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho. Produção de Enquadramento Produções e Vídeo nas Aldeias. Brasil: Descoloniza Filmes, 2023.
Cristiana Bertazoni Martins, “Representações do Antisuyu em El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno de Felipe Guamán Poma de Ayala”. Revista de História, n. 153, 2005, pp. 117-138.
Silvia Rivera Cusicanqui, “Una retorica anticonquista. Miradas ch'ixi en/sobre Waman Puma”. Em seu: Sociología de la imagen: Miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015, pp. 243-279.
Eduardo Viveiros de Castro. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, v. 2, n. 2, 1996, pp. 115-144.
Sobre o autor
Sou dos Campos Gerais, no Paraná, região que desde a infância me cativa por suas paisagens, cachoeiras e trilhas. Concluí minha graduação e o mestrado em História na Universidade Federal do Paraná, onde continuo minha formação como estudante de doutorado, tentando aproximar meu interesse pela natureza aos estudos sobre o saber geográfico na América Colonial. Perceber como transformamos e conhecemos o espaço conjuntamente com outros seres no passado é um exercício de sensibilidade essencial para pensarmos nosso lugar no mundo hoje. Podem me encontrar em
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